Uma linha enevoada
   
 
 
 

Já por várias semanas, temos olhado para os Dez mandamentos - especificamente, a correlação entre os cinco primeiros, inscritos em uma tábua, e os outros cinco, inscritos na segunda tábua. Vimos como o Sexto mandamento, "Não Matarás", é na verdade apenas outra forma de dizer "Eu sou o Senhor teu D'us"; como o sétimo mandamento espelha o segundo, que o oitavo está enraizado no terceiro, e assim por diante.

Isso nos leva ao quinto e ao décimo mandamento. Qual é a conexão entre eles? Eis o que diz o Midrash:

Está escrito: "Honra teu pai e tua mãe", e correspondendo a isso, está escrito: "Não cobiçarás." Isso é para ensinar-nos que a pessoa que cobiça terminará por ter um filho que amaldiçoa seu pai e sua mãe, e que honra alguém que não é seu [verdadeiro] pai.

Nos primeiros quatro grupos de mandamentos, vimos que a conexão é mais profunda - ao ponto de os dois mandamentos em cada "grupo" serem considerados como duas expressões do mesmo princípio. Estou portanto convencido que uma conexão similar está implícita nas palavras do Midrash acima mencionadas, embora eu tenha ainda de descobrir isso.

Enquanto isso, vamos discutir alguns paralelos que podem ser discernidos dos ditos dos Sábios e mestres chassídicos sobre estes dois mandamentos.

Como regra, os cinco mandamentos na primeira tábua falam de assuntos "entre o homem e D'us", ao passo que o segundo governa o relacionamento entre "o homem e seu semelhante". O quinto e o décimo mandamentos, entretanto, parecem exceções a esta regra.

"Honra teu pai e tua mãe" parece uma lei puramente social. Quanto ao décimo, "Não cobiçar a casa do próximo... Não cobiçar a mulher do próximo", isso não fala do caso no qual a pessoa age como resultado do desejo de quem cobiça - esta seria uma transgressão do oitavo mandamento (Não roubarás) ou do sétimo (Não cometerás adultério). Portanto, não é aparente que algo de prejudicial foi feito para o "próximo" em questão. De fato, sei que alguns proprietários de casas para quem o objetivo primordial para construir sua casa foi que ela seria cobiçada pelos vizinhos. Desejar o que não pertence a você parece mais um pecado contra D'us (mostrando insatisfação com aquilo que Ele lhe concedeu) ou contra si mesmo (azedando as bênçãos da vida com esforços mal dirigidos) que contra o próximo.

Talvez, então, "Honra teu pai" realmente pertença à segunda tábua, e "Não cobiçar" deveria ter sido escrito na primeira?


Há dois ensinamentos chassídicos os quais, acredito, lançam alguma luz sobre estes dois mandamentos "mal colocados".

Os antigos filósofos formularam uma regra segundo a qual "uma coisa finita não pode possuir uma qualidade infinita". Mas os mestres chassídicos enfatizam que o ser humano (portanto, algo finito) viola esta lei ao possuir o infinito poder da procriação - o poder de produzir filhos, que por sua vez darão à luz mais filhos, ad infinitum. (A finidade do universo físico no tempo e no espaço podem impor limites externos, mas o potencial em si é infinito).É por esta razão que um casamento é chamado de "um edifício eterno" e a união matrimonial é considerada a mais divina das realizações humanas.

O segundo ensinamento chassídico diz respeito ao poder do pensamento. O plano físico no qual nós interagimos uns com os outros - dizem os mestres chassídicos - é apenas a camada mais externa da realidade, por trás da qual jaz uma sucessão de seres mais profundos e espirituais, sobre os quais também afetamos e somos afetados pelos atos das almas do próximo. Aquilo que dizemos e mesmo aquilo que pensamos uns sobre os outros tem um efeito profundo - mesmo se jamais levar à ação, e mesmo se a pessoa sobre quem se pensa ou fala permanece sem saber o que seu próximo pensou ou falou sobre ela.

Em outras palavras, honrar seu pai e mãe significa honrar o que há de divino no homem (que é aquilo que faz deles seu pai ou mãe), e abster-se de cobiçar, mesmo que apenas em pensamento, aquilo que por direito é de seu próximo, significa reconhecer que seu relacionamento com ele vai além do plano físico e visível, para incluir seu ser espiritual e sua alma.

Portanto, embora as duas tábuas delineiem os respectivos reinos do humano e do divino, o mandamento conclusivo em cada tábua demonstra que a linha entre eles é bem menos clara e rígida do que poderíamos supor.

   
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