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  O Shabat da Visão  
     
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  Diz o Talmud: "Assim como se aumenta a alegria quando entra o mês de Adar, assim se reduz a alegria quando entra o mês de Av." Existe uma interpretação de que os verbos, aumentar e reduzir, relacionam-se ao mês, e não à alegria. Ou seja: "Com a alegria podemos aumentar as venturas de Adar e reduzir as calamidades de Av." Isto é expresso na Lei Judaica que permite comer carne e beber vinho quando o final de um tratado talmúdico é realizado e este fato é sempre comemorado com alegria, mesmo nos primeiros nove dias de Av, quando estes alimentos são normalmente proibidos devido ao luto.

O mês de Av [pai] é denominado Menachêm [que consola] Av. Simplesmente, isto representa uma prece, de que D’us, nosso Pai nos console e traga a reconstrução do Templo. Mas uma vez que Menachêm precede Av surgiu uma explicação mais profunda, ou seja, que nós, os filhos, consolamos o Pai. Esta idéia será entendida de acordo com o dito de nossos sábios que, após a destruição do Templo, D’us disse sobre Si mesmo: "Ai do Pai que exilou Seus filhos e ai dos filhos que foram exilados da mesa de seu Pai."

O Shabat que antecede Tish’á Beav é denominado Shabat Chazon, pois nele é lida a Haftará, [trecho dos Profetas relacionado com a porção semanal da Torá] que se inicia com as palavras "Chazon [a visão de] Yesha’yáhu". Rabi Levi Yitschac de Berditchev explicou, por meio desta parábola, que neste Shabat é mostrada a cada judeu uma visão do Terceiro Templo.

E eu, Daniel, sozinho tive a visão, mas as pessoas que estavam comigo não a viram; mesmo assim um grande terror se abateu sobre elas, e fugiram para esconder-se. (Daniel 10:7)
 

Mas se eles não tiveram a visão, por que ficaram aterrorizados? Porque embora eles mesmos não vissem, suas almas viram. (Talmud, Tratado Meguilá 3a)

No nono dia do mês de Av (Tish'á Beav) jejuamos e lamentamos a destruição do Templo Sagrado em Jerusalém. Tanto o Primeiro Templo (833-423 AEC) como o Segundo Templo (353 AEC-69 EC) foram destruídos nesta data. O Shabat que antecede o dia de jejum é chamado o "Shabat da Visão," pois neste Shabat lemos um capítulo dos Profetas, intitulado "A Visão de Yeshayáhu." [1]

Porém há também um significado mais profundo para o nome "Shabat da Visão," expresso pelo mestre chassídico Rabi Levi Yitschac de Berditchev [2] com a seguinte metáfora:

Um pai certa vez preparou um lindo conjunto de roupas para o filho. Porém a criança negligenciou o presente do pai e logo o terno estava em frangalhos. O pai deu ao filho um segundo jogo de roupas, mas este também foi arruinado pelo descuido do menino. Então, o pai comprou um terceiro conjunto. Desta vez, entretanto, escondeu-o do filho.

De tempos em tempos, em épocas especiais e oportunas, ele mostra o terno ao filho, explicando que quando o menino aprender a valorizar e tomar os devidos cuidados com a roupa, ela lhe será dada. Isso induz a criança a melhorar seu comportamento, até que gradualmente isso se torne uma segunda natureza - quando então será merecedora do presente dado pelo pai.

No "Shabat da Visão" - diz Rabi Levi Yitschac, a todos e a cada um de nós é concedida uma visão do Terceiro Templo - o final - uma visão que, para parafrasear o Talmud, "embora não vejamos por nós mesmos, nossa alma vê." Esta visão evoca uma profunda reação em nós, mesmo se não estivermos plenamente conscientes da causa de nossa súbita inspiração.

A morada Divina

O Templo Sagrado em Jerusalém era o assento da presença manifesta de D'us no mundo físico.

Um dogma básico de nossa fé é que "Toda a terra está repleta com Sua presença" [3] e "Não há lugar sem Ele." [4] Mas a presença de D'us e o envolvimento em Sua criação são mascarados pelas obras aparentemente arbitrárias e independentes da natureza e da história. O Templo Sagrado foi um brecha nesta máscara, uma janela através da qual D'us irradiou Sua luz para o mundo. Aqui o envolvimento de D'us em nosso mundo foi demonstrado abertamente por um edifício, no qual milagres eram uma parte "natural" de seu funcionamento diário [5], e cujo próprio espaço expressava a infinidade e a completa difusão do Criador. [6] Aqui D'us mostrava-se ao homem, e o homem apresentava-se a D'us. [7]

Por duas vezes recebemos o presente de uma morada Divina em nosso meio. Duas vezes deixamos de nos mostrar merecedores deste presente, e banimos a presença Divina de nossa vida.

Portanto, D'us construiu-nos um terceiro templo. Diferente dos anteriores, de construção humana e portanto sujeitos a degradação por causa das falhas humanas, o Terceiro Templo é tão eterno e invencível quanto seu Arquiteto. Mas D'us ocultou de nós este "terceiro conjunto de roupas," confinando sua realidade a uma esfera celestial, mais elevada, além da visão e da vivência de nosso ser terreno.

A cada ano, no "Shabat da Visão," D'us nos mostra o Terceiro Templo. Nossa alma contempla uma visão de um mundo em paz consigo mesmo e com seu Criador, um mundo repleto de conhecimento e de consciência de D'us, um mundo que percebeu seu potencial Divino para a bondade e a perfeição. É uma visão do Terceiro Templo no céu - em seu estado espiritual - como o terceiro jogo de roupas da analogia, que a criança vê mas não pode ter. Mas é também uma visão com uma promessa: uma visão de um templo celestial suspenso para descer à terra, uma visão que nos inspira a corrigir nosso comportamento e apressa o dia em que o Templo espiritual tornar-se-á realidade concreta.

Através destas visões repetidas, viver na Divina Presença torna-se mais e mais uma "segunda natureza" para nós (como disse Rabi Levi Yitschac em sua analogia), elevando-nos progressivamente ao estado de merecimento para vivenciar o Divino em nossa vida.

A casa individualizada

As metáforas de nossos Sábios continuam a nos falar muito depois do ponto principal de sua mensagem ter sido assimilado. Sob a superfície do significado mais óbvio da metáfora está camada após camada de significado, onde cada detalhe da narrativa é importante.

O mesmo aplica-se à analogia de Rabi Levi Yitschac. Seu significado básico é claro, mas muitas percepções sutis estão envoltas em seus detalhes. Por exemplo: Por que, poderíamos perguntar, os três Templos são representados como três jogos de roupas? O exemplo de um edifício ou casa [8] não teria sido mais apropriado?

A casa e a roupa - ambas "abrigam" e contêm a pessoa. Mas a roupa o faz de modo muito mais pessoal e individualizado. Embora seja verdade que as dimensões e o estilo de uma casa refletem a natureza de seu ocupante, fazem-no de maneira mais generalizada - não tão especificamente e intimamente como uma roupa envolve quem a veste.

Por outro lado, a natureza individual das roupas limita suas funções ao uso pessoal. Uma casa pode abrigar muitas pessoas; uma roupa, apenas uma. Posso convidá-lo a ir à minha casa, mas não posso compartilhar minha roupa com você: mesmo se eu a der a você, não irá vestir-lhe tão bem quanto a mim, pois "serve" apenas a meu corpo.

D'us escolheu revelar Sua presença em nosso mundo em uma "morada" - uma estrutura comunal que vai além do pessoa, para abraçar um povo inteiro e toda a comunidade do homem. [9] Mesmo assim o Templo Sagrado em Jerusalém também tinha alguns aspectos semelhantes ao da roupa. São estes aspectos que Rabi Levi Yitschac deseja enfatizar quando retrata o Templo Sagrado como um conjunto de roupas.

Pois o Templo Sagrado foi também uma estrutura altamente compartimentalizada. Havia um "Pátio das Mulheres" e um pátio reservado para os homens, uma área restrita aos cohanim (sacerdotes), um "Santuário" (hechal) impregnado de uma santidade maior que a dos "pátios," e o "Santo dos Santos" - uma câmara na qual apenas o Sumo Sacerdote podia entrar, e somente em Yom Kipur, o mais santo de todos os dias do ano. O Talmud enumera oito áreas de santidade variada dentro do complexo do Templo, cada qual com sua função e propósito distinto. [10]

Em outras palavras, embora o Templo expressasse uma única verdade - a presença toda penetrante de D'us em nosso mundo - assim o fazia para cada indivíduo de forma personalizada. Embora fosse uma "casa" no sentido em que servia a muitos indivíduos - na verdade o mundo todo - como seu ponto de encontro com o infinito, todo e cada indivíduo o considerava uma "roupa" sob medida para suas necessidades espirituais, segundo seu relacionamento pessoal e íntimo com D'us.

A cada ano, no Shabat que antecede Tish'á Beav, temos uma visão de nosso mundo como um lar Divino - um local onde todas as criaturas de D'us sentirão Sua presença. Mas esta é também uma visão de uma "roupa" Divina - o relacionamento nitidamente pessoal com D'us, que serve especialmente a nosso caráter e aspirações individuais, que cada um de nós irá desfrutar quando o Terceiro Templo descer à terra. [11]

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[1] - Yeshayáhu 1:1-27. Esta leitura é a terceira de uma série de leituras, chamada os "Três de Admoestação," que são lidas nos três Shabatot que precedem o Nove de Av.

[2] - 1740-1810.

[3] - Yeshayáhu 6:3.

[4] - Ticunei Zôhar, Ticun 57.

[5] - Ética dos Pais 5:5.

[6] - O Talmud (Tratado Yoma 21a) relata que o Templo e seu mobiliário desafiavam a característica mais fundamental dos objetos físicos - que eles ocupam espaço - pois "O espaço da Arca não fazia parte das medidas." O Santo dos Santos media 20 cúbitos (aprox. 9,5 metros) por 20 cúbitos; a Arca que ficava no centro media 2,5 x 1,5 cúbitos; porém a distância entre cada uma das paredes externas da Arca às paredes da câmara era de uns bons 10 cúbitos. Em outras palavras, a Arca, embora fosse um objeto físico com dimensões espaciais, não ocupava espaço algum no aposento.

[7] - Shemot 23:17, e pelo Talmud, San'hedrin 4b.

[8] - Conforme a analogia dada pelo Midrash.

[9] - A "morada" também representa "um lugar que abriga a própria essência da pessoa".

[10] - Talmud, Kelim 1:6.

[11] - Baseado nas palestras do Rebe em Shabat Chazon, 5742 (1982) e 5744 (1984), (Licutei Sichot, vol. XXIX, págs. 18-25).

     
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