<<<artigo anterior
próximo artigo>>>
  Intimidade em Chamas  
  Por Rabino Yosef Yitschac Jacobson  
indice
 

Pouso Forçado
Um avião estava tendo problemas na turbina, e o piloto instruiu a tripulação a dizer aos passageiros que ficassem sentados e se preparassem para um pouso de emergência.
Poucos minutos depois, o piloto perguntou aos comissários de bordo se todos estavam sentados e com os cintos afivelados.
“Tudo em ordem, Capitão,” foi a resposta, “exceto um advogado que ainda está percorrendo a aeronave, entregando cartões de visita.”

A Grande Crise
Em nove de Av no ano 70 EC as legiões romanas em Jerusalém irromperam na torre da Fortaleza de Antônia no Templo Sagrado e atearam fogo. Nos restos enegrecidos do santuário jaziam mais que as ruínas da grande revolta judaica pela independência política; parecia que o próprio Judaísmo tinha sido destruído para sempre.

Dos cerca de cinco milhões de judeus no mundo, mais de um milhão morreram naquela guerra frustrada pela independência. Muitos morreram de inanição, outros pelo fogo. Foram tantos judeus vendidos como escravos e entregues às arenas e circos para lutar contra os gladiadores que o preço dos escravos caiu rapidamente, cumprindo a antiga maldição: “Ali vocês serão oferecidos como escravos, e ninguém desejará comprar” (Devarim 26:68). A destruição foi precedida por eventos tão devastadores que sob uma perspectiva objetiva, parecia que o povo judaico tinha dado seu último suspiro.

Era isso que surpreendia um filósofo como Nietzsche, feroz crítico dos judeus, como ocorreu com tantos pensadores no decorrer dos tempos. Nas obras Crepusculo dos Ídolos e O Anticristo o filósofo alemão escreveu: “Os judeus são o povo mais notável na história do mundo, pois quando foram confrontados pela questão: Ser ou não ser, eles escolheram, com deliberação decididamente fora desse mundo, ser a qualquer preço… Eles se definiram como contrários a todas aquelas condições sob as quais uma nação previamente era capaz de viver… Psicologicamente, os judeus são um povo dotado com a mais forte vitalidade… Os judeus são exatamente o oposto dos decadentes.”
Como os judeus, na verdade, chegaram a isto?

O Abraço dos Querubins
O Talmud relata um acidente profundamente estranho ocorrido momentos antes da destruição do Templo em Jerusalém:

“Quando os pagãos entraram no Templo Sagrado, viram os querubins se agarrando um ao outro. Eles os levaram para as ruas e disseram: ‘Estes judeus… é nisso que eles se ocupam?’ Assim, eles difamaram [o povo judeu], como está escrito: ‘Todos aqueles que a honraram a desprezaram, pois eles viram sua nudez. (1).’”

O significado dessas palavras é este: a câmara mais recóndita do Templo de Jerusalém, o local mais sagrado do Judaísmo, era conhecido como “Santo dos Santos” e visto como o epicentro espiritual do universo. Dois querubins de ouro – eram duas figuras com asas, uma masculina e outra feminina – estavam localizadas no Santo dos Santos. Estes querubins representavam o relacionamento entre o noivo cósmico e sua noiva, entre D’us e o povo judeu.

O Talmud ensina (2) que quando o relacionamento entre noivo e noiva estava azedo, as duas faces eram viradas uma da outra, como ocorre quando cônjuges estão zangados entre si. Quando o relacionamento estava saudável, os dois querubins ficavam de frente um para o outro. E quando o amor entre D’us e Sua noiva estava no auge, os querubins se abraçavam “como um homem se apega à sua mulher”.

Ora, o Talmud está nos dizendo, quando os inimigos de Israel invadiram o Templo – na época de sua destruição no mês hebraico de Av (3) – eles entraram no Santo dos Santos, um local tão sagrado que a entrada somente era permitida a um único indivíduo, o Sumo Sacerdote, e apenas em Yom Kipur, o dia mais sagrado do ano, e ali eles viram os querubins se abraçando? Eles os arrastaram para fora do Templo e os levaram às ruas, vulgarizando sua importância sagrada (4).
Isso parece bizarro. Quando os inimigos de Israel invadiram o Templo para destruí-lo, o relacionamento entre D’us e Seu povo estava no ponto mais baixo possível, pois aquele era o motivo para a destruição e o subsequente exílio. Os judeus estavam a ponto de se tornarem afastados de D’us por milênios. A presença manifesta da Divindade no mundo, através do Templo em Jerusalém, cessaria; os judeus e D’us ficariam agora isolados entre si.

Porém, paradoxalmente, foi nesse exato instante que os querubins se juntaram, simbolizando o mais profundo relacionamento entre D’us e Israel. Como devemos entender isto (5)?

Preparando-se para a Viagem
A explicação mais ousada foi dada pelo fundador do Chassidismo, Rabi DovBer. conhecido como o Maguid de Mezeritch (falecido em 1772). Citando a ordem dos sabios de que um homem deveria juntar-se à sua esposa antes de partir em viagem, o Maguid sugere que D’us, antes de Sua longa jornada para longe de casa, expressou Sua intimidade com o povo judeu. Antes do início de um longo exílio, os querubins ficaram entrelaçados, representando a intimidade que precede a viagem (6).

O que o mestre chassídico estava transmitindo através de sua impressionante metáfora – e este é um tema importante na filosofia chassídica – era que foi no momento da destruição que um novo relacionamento entre D’us e Seu povo começava a se desenvolver. O maior momento da crise foi também um momento de intimidade. Como o Templo estava em chamas, e com ele grande parte da vida e história judaicas, D’us impregnou (metaforicamente falando) uma semente de vida dentro da alma judaica; Ele implantou em Seu povo o potencial para um novo nascimento.

Durante dois milênios, esta “semente” tem nos sustentado, dando ao povo judeu a coragem e a inspiração para viver e prosperar. O Judaísmo floresceu nas décadas e séculos que se seguiram à destruição do Templo de maneira sem precedentes: a Mishná, Talmud, Midrash e Cabalá foram todas nascidas durante estes séculos. As condições trágicas do exílio foram catalisadores para um rejuvenescimento sem paralelos. O fechamento de uma porta abriu muitas outras.

Muitos impérios, religiões e culturas tentaram demonstrar ao povo judeu que seu papel no esquema da Criação tinha terminado, ou que jamais tinha começado, atraindo-os para a cultura prevalecente ao redor. Porém a “intimidade” que eles vivenciaram, por assim dizer, com D’us poucos momentos antes que Ele “se afastasse” deles, deixou uma marca indelével. Isso os imbuiu com uma visão, um sonho e um compromisso inabalável. No decorrer de suas jornadas, muitas vezes repletas de imensa angústia, eles se apegaram à fé na qual tinham um pacto com D’us para transformar o mundo numa morada Divina; de curar um mundo fraturado ansiando por reunir-se com sua verdadeira realidade.

Nascimento
Isso nos garante um profundo entendimento sobre a antiga tradição judaica (7), que o Mashiach (Messias) nasceu a 9 de Av. No momento em que o Templo estava para ser engolfado em chamas, o sonho da Redenção estava nascendo. Houve uma intimidade nas chamas e isso produziu uma semente oculta que terminaria por trazer cura a um mundo alquebrado. Pense a respeito: a própria possibilidade para os rabinos daquelas gerações declararem que Mashiach nasceu em Nove de Av, nada mais foi que o testemunho da intimidade que acompanhou o afastamento e exílio. Agora finalmente estamos preparados para o nascimento (8).


Notas:
1 – Talmud, Yoma 54 b.
2 – Veja Talmud Yoma ibid; Bava Batra 99 a.
3 – O 9 de Av é a data da destruição do Primeiro e do Segundo Templos, pelos babilônios e romanos, no ano 3339 (423 AEC) e 3830 (70 EC).
4 – Talmud Yuma ibid. A Arca do Testemunho, com os querubins no topo da sua tampa, estavam escondidos numa câmara subterrânea no Templo 22 anos antes da destruição do Primeiro Templo, onde eles permanecem até hoje (segundo a maioria das opiniões). Assim, nem os babilônios nem os romanos teriam encontrado a Arca no Santo dos Santos. O Talmud explica que os querubins que foram arrastados para as ruas não eram os anjos em cima da Arca, mas enfeites que decoravam as paredes do Santo dos Santos e que agiram como um “barômetro” do estado de casamento entre D’us e Israel.
5 – Essa questão é levantada em Maharsah para Talmud Yuma ibid.
6 – Citado em Benei Yisachar em seus discursos no mês de Av.
7 – Yerushalmi Berachot 2:4.
8 – Este ensaio é baseado num discurso proferido pelo Rebe em Purim de 1984 (publicado em Sefer Hamaamarim Melukat vol. 2 págs. 269-270).
     
top
   
  <<<artigo anterior  
próximo artigo>>>