A memória da água
   
 
 
 

Sua lembrança mais remota é de estar imerso em água. Você fazia parte de seu meio ambiente: você era sua mãe e sua mãe era você, você era o universo e o universo era você. Não havia eu, ela, isso ou aquilo, pois tudo se resumia num único ser.

Então chegou o dia em que você foi arremessado para fora das águas envolventes. Foi-lhe conferida uma unicidade e uma identidade, e a fusão com sua fonte tornou-se um lampejo de memória. Você agora revela-se em sua singularidade, seu ego é um escudo, arrancando sustento e objetivo de um ambiente distinto de si mesmo, e que você compartilha competindo com outros, também encouraçados.

Porém a lembrança permanece. E quando a estranheza de seu mundo torna-se demais para suportar, e a batalha com a solidão pesada demais para carregar, você busca consolo em seu passado aquático. A lembrança do útero o conforta, garantindo-lhe que não está realmente só, que por baixo de tudo isso você é parte do universo, com seu Criador.


Tendo isso em vista, a narrativa da Torá sobre o Dilúvio de Noé relata a trágica história de uma geração corrupta, erradicada da face da terra. Mas um axioma do ensinamento chassídico - especialmente como é expressado nas obras e palestras do Lubavitcher Rebe - é que cada palavra da Torá, em seu âmago, é uma pedra preciosa de bondade autêntica. Nosso mundo é um lugar onde a negatividade e mesmo o mal indisfarçável pode ocorrer, e a Torá, que se dirige a nosso mundo e o descreve, reflete isso. Mas como nos dizem nossos Sábios, a Torá precede o mundo, precede a Criação; em seu estado mais quintessencial, sua própria história e lei têm um significado positivo.

O Dilúvio de Nôach, em sua essência, é a imersão da terra no micvê do conhecimento Divino, no útero de sua singularidade primordial. E embora a terra terminasse por emergir das águas do Dilúvio, a lembrança permanece em seu solo e em suas rochas, em suas árvores e nuvens, e em todo ser que rasteja ou caminha sobre ela. Nosso mundo nunca está distante demais, separado demais, alienado demais, para apagar esta lembrança de submersão total dentro da totalidade toda abrangente de seu Criador.

   
   
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