Na Terra do Porquê
   
 
 
 

Tente imaginar a vida sem a palavra "porque". Você recebeu seu salário este mês porque foi trabalhar todos os dias úteis. Deixam você sair da loja com uma sacola de alimentos porque você pagou por eles em dinheiro, cheque ou cartão de crédito. Em geral, você é amado por aqueles a quem ama, preocupa-se com aqueles que se preocupam com você, é tratado bem pelas pessoas a quem trata bem.

Podemos nos elevar acima deste mundinho do porquê? Maimônides fala de um tipo de pessoa que "faz a verdade porque é verdade", querendo dizer que não há porquê (perceba, entretanto, que nem sequer podemos descrever a ausência de "porquês" sem usar a palavra porquê). Existe um lugar, como dizia Maimônides, onde as coisas são porque são, não como um meio para uma outra coisa.

De fato, encontramos lampejos deste mundo da verdade em nossas vidas utilitárias. Um pai ama e se preocupa com seu filho porque "ele é meu filho" - i.e., por nenhuma razão específica. Mesmo assim, de forma geral vivemos nossa vida na terra do Porquê, pois mesmo quando falamos sobre os aspectos mundo-da-verdade de nossas vidas, fazemos isso na linguagem de nosso ambiente natural.


O Shemá é uma coleção de 20 versículos bíblicos enumerando os fundamentos do judaísmo. Quando nasce um bebê judeu, trazemos crianças para recitar o Shemá ao lado do berço. Em seu leito de morte, o judeu recita o Shemá. Neste ínterim, dizemos estes versículos duas vezes ao dia, todos os dias, pela manhã e à noite.

O Shemá consiste de três seções. A terceira seção - Bamidbar 15:37-41 - fala da mitsvá do tsitsit e do Êxodo. As duas primeiras seções - Devarim 6:4-9 e 11:13-21, respectivamente - declaram a unicidade de D'us e nosso dever, como judeus, de amar a D'us, estudar a Torá e ensiná-la a nossos filhos, atar tefilin em nosso braço e afixar mezuzot nos batentes das portas de nosso lar.

O interessante sobre as primeiras duas seções do Shemá é que a segunda é basicamente uma repetição da primeira. Há uma diferença fundamental. Na primeira seção do Shemá, simplesmente ouvimos para amar a D'us e cumprir Suas mitsvot como nossa afirmação da unicidade de D'us. Na segunda seção - que forma parte da leitura desta semana da Torá, Êkev ("Porque") - somos também informados das recompensas de cumprir as mitsvot ("Concederei a chuva em tua terra na época apropriada... e comerás e serás saciado"; "Para que teus dias se multipliquem... sobre a terra") e adverte sobre as conseqüências da transgressão ("Ele conterá os céus"; "tu logo perecerás da boa terra"). Afora isso, entretanto, a segunda seção repete o versículo da primeira, apenas com pequenas diferenças de vocabulário e de sintaxe.

Se ser um judeu significasse livrar-se do egoísmo e da temporalidade de nosso mundo do "Porquê", teríamos apenas a primeira seção do Shemá. Se a essência do judaísmo fosse o desenvolvimento e aperfeiçoamento da realidade na qual nascemos, teríamos apenas a segunda seção. Temos ambas porque nossa missão na vida compreende as duas.

D'us deseja que nos elevemos acima da estreiteza de nossa humanidade, e ao mesmo tempo permaneçamos presas nela. Ele deseja que toquemos a Verdadede, e ao mesmo tempo permaneçamos emaranhados nas necessidades e maquinações de nossa individualidade. D'us deseja ser um - Ele deseja estar em toda a parte.

   
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