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  O mapa da vida  
  Rabino chefe da Inglaterra, Professor Jonathan Sacks  
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"Todos os judeus que são conscientes de sua identidades como judeus estão impregnados de história" – escreveu Sir Isaiah Berlin. "Eles têm lembranças mais longas, estão cônscios de uma continuidade mais longa como comunidade que qualquer outra que tenha sobrevivido."

Ele estava certo. O Judaísmo é uma religião de memória. O verbo zachor, lembrar, aparece nada menos que 169 vezes na Torá. "Lembrem-se que vocês eram estrangeiros no Egito." "Lembrem-se dos dias de antigamente." "Lembrem-se do sétimo dia para mantê-lo sagrado."
A memória, para os judeus, é uma obrigação religiosa.


Para ser livre, é preciso abandonar o ódio. Transforme-o numa bênção, não numa maldição; numa fonte de esperança, não em humilhação.

Especialmente nesta época do ano. Nós a chamamos de "três semanas", que nos conduz ao dia mais triste no Calendário Judaico, Nove de Av, aniversário da destruição dos dois Templos, o primeiro por Nabucodonosor, Rei da Babilônia em 586 AEC e o segundo por Titus, em 70 EC.

Os judeus jamais esqueceram aquelas tragédias. Até hoje, em todo casamento, quebramos um copo em sua memória. Durante as três semanas, não temos celebrações. Em Nove de Av passamos o dia jejuando, sentados no chão ou em assentos baixos como enlutados, lendo o Livro das Lamentações. É um dia de profundo luto coletivo.

Dois mil e quinhentos anos é um longo tempo para recordar. Muitas vezes me perguntam – geralmente em conexão com o Holocausto – é realmente certo recordar? Não deveria haver uma moratória no luto? A maioria dos conflitos étnicos no mundo não é alimentada por lembranças de antigas injustiças? O mundo não seria mais pacífico se de vez em quando esquecêssemos?

Sim e não. Depende de como nos lembramos. Meu falecido predecessor Lord Jacobovits costumava enfatizar um fato fascinante. Três vezes no Livro de Bereshit D’us é mencionado como tendo Se lembrado. "D’us Se lembrou de Nôach" e tirou-o da Arca para a terra firme. "D’us Se lembrou de Avraham" e salvou seu sobrinho Lot da destruição das cidades da planície. "D’us Se lembrou de Raquel" e deu um filho a ela. Quando D’us Se lembra, Ele o faz para o futuro e para a vida.

De fato, embora as duas sejam confundidas com freqüência, memória é diferente de história. A história é sobre eventos ocorridos há muito tempo com outra pessoa. Memória é a minha história. Trata de onde eu vim e de qual narrativa eu faço parte. A história responde à pergunta: "O que aconteceu?" A memória responde a pergunta. "Quem, então, sou eu?" É sobre identidade e a conexão entre as gerações. No caso da memória coletiva, tudo depende de como relatamos a história.

Não nos lembramos para buscar vingança. "Não odeiem os egípcios" – disse Moshê – "pois vocês foram estrangeiros na terra deles." Para ser livre, é preciso abandonar o ódio. Transforme-o numa bênção, não numa maldição; numa fonte de esperança, não em humilhação.


Prezo a riqueza de saber que minha vida é um capítulo num livro iniciado pelos meus ancestrais há muito tempo, ao qual acrescentarei minha contribuição antes de entregá-lo aos meus filhos

Até hoje, os sobreviventes do Holocausto que conheço passam o tempo partilhando suas lembranças com os jovens, não por vingança, mas o oposto: para ensinar tolerância e o valor da vida. Cientes das lições de Bereshit, nós também tentamos nos lembrar para o futuro e para a vida.

Na cultura apressada de hoje, desprezamos atos de recordação. A memória dos computadores aumentou, enquanto que a nossa encolheu. Nossos filhos não memorizam mais trechos de poesia. Seu conhecimento de história é muito vago. Nosso senso de espaço se expandiu. Nosso senso de tempo encolheu. Sociedades, como indivíduos, podem sofrer do Mal de Alzheimer.

Isso não pode estar certo. Um dos maiores presentes que podemos dar aos nossos filhos é o conhecimento de onde nós viemos, as coisas pelas quais lutamos, e por quê. Nenhuma das coisas que valorizamos – liberdade, dignidade humana, justiça – foi conquistada sem conflito. Nem pode ser sustentada sem uma vigilância consciente. Uma sociedade sem memória é como uma jornada sem mapa. É muito fácil se perder.

Quanto a mim, prezo a riqueza de saber que minha vida é um capítulo num livro iniciado pelos meus ancestrais há muito tempo, ao qual acrescentarei minha contribuição antes de entregá-lo aos meus filhos. A vida tem significado quando é parte de uma história, e quanto maior a história, mais nossos horizontes se expandem. Além disso, as coisas lembradas não morrem. É o mais próximo que podemos chegar da imortalidade na terra.

     
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