Noite e Dia

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  Por Maurice Lamm
 

A vida é um dia encerrado entre duas noites – a noite do "ainda não" e a noite do "não mais", após a morte. Aquele dia pode ser nublado com sofrimento e frustração, ou brilhante com calor e contentamento. Mas, inevitavelmente, a noite da morte deve chegar.

A morte é uma noite que jaz entre dois dias – o dia da vida na terra e o dia da vida eterna no Mundo Vindouro. A noite pode chegar subitamente, no piscar de um olho, ou pode vir gradualmente, como um sol se afastando aos poucos.

Assim como o dia da vida é um interlúdio, também a noite da morte é um interlúdio. Como o dia inevitavelmente se estende até o crepúsculo, também a escuridão inevitavelmente é seguida pela alvorada. Cada porção – a existência fetal, a vida, a morte e a vida eterna – está separada por um véu que o entendimento humano não consegue penetrar.

Nós, os sobreviventes que não acompanham o falecido em sua jornada dentro da noite, ficamos sozinhos contemplando o vazio velado, negro. Há uma onda de emoções conflitantes agitando-se dentro de nós: atordoamento e paralisia, agonia e entorpecimento, culpa e raiva, medo, futilidade e dor – e também emancipação de cuidados e preocupações. A corrente dourada do elo familiar está quebrada e balança diante de nossos olhos. Todo o nosso ser está convulsionado. O amor e esperança desapareceram, e em seu lugar ficou apenas o desespero. A preciosa alma que tocou nossa vida e aumentou seu senso de propósito e significado não está mais aqui. Nosso único consolo é que já existiu. Há um passado, mas o passado não está mais; e o futuro ainda é nebuloso. A corrente quebrada, balançando, nos hipnotiza e ficamos congelados.

O Judaísmo é uma fé que abrange tudo que há na vida, e a morte é parte da vida. Assim como essa fé nos leva a momentos de júbilo, também nos guia através dos terríveis momentos de dor, apoiando-nos firmemente através das complexas emoções do luto, e nos fazendo desviar o olhar da noite de trevas para a luz do dia da vida.

No momento da morte, dolorosas dúvidas nos mortificam interiormente – problemas existenciais e filosóficos tão teimosos, que parecem não querer se afastar. Por que foi esta pessoa, de todas as pessoas que preenchem nosso grande mundo, fadada a terminar seus dias justamente agora? Por que o fim vem antes que a lógica da vida ordenasse que viesse? A morte deveria ser, sentimos, uma soma abaixo da última linha – o total de todas as variadas experiências da vida. Deveria chegar a uma conclusão significativa, e terminar naturalmente. Não deveria se intrometer no meio das equações dos vivos, desmanchando todos os cálculos, confundindo todos os números, desmentindo todas as soluções preparadas. Mas, muitas vezes, o fim é abrupto. A vida continua sendo um grande problema desconhecido, incalculável, atormentado pela morte.

No momento da morte há uma grave desorientação. Ficamos perplexos não apenas pelas grandes questões de vida e morte, mas pelos problemas de como nos sentir e nos comportar adequadamente: como devemos reagir à tragédia? Qual é o respeito adequado que devemos dar ao morto? Como atingimos uma medida de dignidade durante um enterro? Devemos prantear a vida não completada do falecido, levado antes de terminar seus assuntos da vida, ou devemos nos sentir perdidos, agonizando pelo nosso próprio sofrimento pessoal?

E de que maneira devemos nos consolar? Devemos aparecer perante a família e amigos com coragem e dignidade intocadas? Ou podemos dar vazão à angústia numa cascata de lágrimas? Devemos participar das amenidades costumeiras de uma ocasião social obtida com a reunião da família, ou devemos nos preocupar com a alma ferida pela nossa perda e deixar que o mundo trate de si mesmo?

Milhares de anos de nossa rica tradição nos fornecem orientação durante esses momentos de crise. A sabedoria acumulada das eras é uma fonte de grande consolo.

A dor do coração não vai desaparece subitamente. Não haverá um consolo mágico. Mas o Judaísmo ensina ao coração que sofre como expressar sua dor com amor e respeito, e como conseguir um consolo que nos devolve à humanidade e nos afasta da auto-piedade.

A morte não é o fim, senão o princípio. Nossa vida neste mundo é uma preparação para o mundo Vindouro. A mente humana é limitada para compreender os desígnios de D'us, único e ilimitado, Criador de todos os seres e do universo.

As leis que regem o sepultamento, o luto judaico e seus costumes são marcados pela simplicidade e desprovido de ostentações.

Os dias de Israel se aproximavam da morte; e ele chamou seu filho, Yossef, e lhe disse:“… Faça-me uma bondade e uma verdade… Eu repousarei com meus ancestrais; leve-me para fora do Egito, e me enterre no local de repouso deles”

Bereshit 47:29-30

“Faça-me uma bondade e uma verdade – uma bondade feita para os mortos é uma verdadeira bondade, pois não se espera um favor em retorno.

Rashi, ibid.

O Midrash relata que quando D’us quis criar o homem, a Verdade argumentou que “ele não deveria ser criado, pois está repleto de mentiras.” A bondade, no entanto, disse: “Ele deveria ser criado, pois está repleto de bondade.”[1]

O Midrash não diz qual foi a resposta da Verdade àquele argumento, mas podemos deduzir que ela disse: “Mas esta, também, é apenas outra das mentiras do homem. Sim, o homem faz atos de bondade para seus semelhantes, mas não porque está ‘repleto de bondade’ – somente porque espera que devolvam o favor.”

Porém há um ato de bondade que prova que a Verdade está errada: a bondade feita aos mortos. Esta “bondade e verdade”, como a Torá a chama, demonstra que o homem é capaz de um ato realmente altruísta, provando assim que todos os nossos atos de bondade – mesmo aqueles superficialmente manchados por motivos egoístas – são verdadeiros na essência, derivando de um desejo intrínseco de dar de nós mesmos aos nossos semelhantes.

 

 

 
   
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