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Ela
estava tão bonita ali deitada de costas, perfeitamente imóvel.
Aninhei sua cabeça em meus braços enquanto lavávamos
seu rosto, e depois o restante do corpo. Limpamos suas unhas e nos asseguramos
de lavar cada dobra da pele para que ela ficasse perfeitamente limpa.
Sua pele estava suave e seus membros espantosamente flexíveis.
Quando estava seca, começamos cuidadosamente a vesti-la numa roupa
simples mas bonita e branca. Com amor e lágrimas a envolvemos num
cobertor e pedimos a D’us que a abençoasse. Então
fechamos o caixão.
Miriam Rivka bat Yitschak nasceu em 1915. Viveu 90 anos. Nada mais sei
sobre ela, exceto que não teve filhos. Não sei como ela
viveu nem como morreu. Tudo que sei é que fui abençoada
com a oportunidade de preparar seu corpo para deixar este mundo, e que
minha mão na dela foi o último toque que ela recebeu neste
mundo.
Eu jamais tinha feito uma taharat (purificação) antes –
os preparativos feitos antes do funeral para todo judeu, homem, mulher
ou criança. Quando entramos na sala fiquei petrificada. Chegara
ali pensando que apenas leria os Salmos enquanto minha amiga e uma outra
mulher preparavam o corpo. Porém elas precisavam de uma terceira
pessoa e eu senti que não podia, nem queria, recusar.
A princípio quando entramos, o odor de produtos de limpeza e dos
corpos nos atingiu. A sala estava gelada e sobre cada mesa, envolto em
plástico, havia um corpo. Eu queria sair correndo, mas então
vi a pequena chama tremulando num canto do aposento. Perto do corpo de
Miriam estava uma ner neshamá (“vela da alma”), acesa
a partir do instante de seu falecimento e permanecendo ao seu lado até
o enterro, aquecendo e iluminando a ela e tudo ao seu redor.
Com assombro vi a mulher encarregada detalhar o que precisava ser feito.
Com grande amor ela descreveu as tarefas, algumas simples, outras difíceis
tanto do ponto de vista físico quanto emocional, mas todos necessários.
Ao começarmos o processo, a sala começou a mudar. Eu não
notava mais os outros corpos ao redor, pois meu único foco era
Miriam. Para minha surpresa, seu corpo, a princípio frio e firme
ao toque, parecia reagir quando a segurávamos e a limpávamos.
Por respeito a ela e sua privacidade, somente a parte dela que estava
sendo limpa era deixada visível, e fizemos grande esforço
para manter o resto adequadamente coberto. Um pedaço de pano branco
cobria seu rosto o tempo todo, para que ela não fosse olhada ou
objetivada.
Recitamos algumas preces à medida que trabalhávamos, pedindo
perdão em nome dela, e pedindo a ela também que nos perdoasse
se lhe causássemos qualquer dano ou desconforto. Cada passo do
processo estava repleto de significado e profundidade. E todo movimento
tinha a intenção de respeitar sua vida enquanto era preparada
para a morte.
Depois que ela foi completamente lavada, passou então pelo processo
de micvê, uma imersão física e espiritual na qual
o corpo se transfere de um estado de impureza para aquele de pureza total.
A palavra hebraica para “impuro”, tamê, vem do mesmo
radical que timtum, um estado de constrição, de estar bloqueado.
Agora, enquanto está sendo preparada para deixar este mundo, deixa
todas as amarras, todos os limites. Está finalmente pronta a ser
libertada, a se abrir e entender o que até agora não fazia
sentido.
Suas vestes finais são como as sacerdotais, com calças brancas,
uma camisa longa, um casaco, cinto, avental, a cabeça e a face
cobertas. O rosto é coberto como o de uma noiva sob a canópia,
oculto do mundo exterior a fim de conectar-se com D’us Acima e com
si mesma aqui embaixo. E para simbolizar a pureza e inocência, a
falecida, como a noiva, está vestida completamente de branco.
Cada nó que é feito em sua roupa, desde o cinto ao pano
que envolve seus pés e ao redor do pescoço, está
amarrado na forma de letras que escrevem o Nome de D’us. Estas vestes
são feitas à mão e não têm bolsos, para
nos lembrar que o falecido não tem necessidade de bens materiais
e que dinheiro ou joias não têm significado no Mundo da Verdade.
Terra de Israel é colocada sobre seu coração e abaixo,
para ajudar o corpo e a alma a entenderem que sua missão neste
mundo agora chegou ao fim. Seu coração não baterá
mais e seu útero não poderá mais dar frutos. Sobre
suas pálpebras fechadas colocam-se pedaços de argila, um
lembrete de que não mais precisa dos olhos físicos para
ver, e sua cabeça está sobre um travesseiro de palha, mais
elevado que o restante do corpo.
Quando terminaram os preparativos, olhei com pena para os outros corpos
no aposento. Podiam ser identificados apenas por uma etiqueta no dedo
do pé, e pareciam tão assustados, tão abandonados,
tão sozinhos. Perguntei-me se alguém viria para limpar os
corpos e cuidar deles amorosamente da maneira que fizemos por Miriam.
E embora eles talvez fossem vestidos num bonito vestido ou conjunto, com
maquiagem profissionalmente aplicada e o cabelo arrumado, alguém
ajudaria a preparar a separação da alma e do corpo? Alguém
cuidaria do interior, em vez de apenas do exterior?
Enquanto caminhávamos pela sala olhei para o comércio em
que a morte se transformou. As paredes estavam adornadas com diversas
opções de caixões, cada qual com uma abertura para
mostrar o rosto. Pensei sobre Miriam num caixão simples de madeira.
Embora lindamente vestida, ninguém exceto o Criador poderia vê-la.
Seu rosto permaneceria coberto, como tinha estado desde que sua vida terminou,
sem maquiagem ou falsos adornos.
Ao sair do prédio, desejei ter conhecido Miriam antes que ela morresse.
Desejei ter lhe dado o mesmo tempo, carinho e amor enquanto ela ainda
estava sofrendo no hospital. Porém eu não a tinha conhecido,
portanto não o fiz. Porém ao conhecê-la pouco antes
de sua subida ao Alto, eu tinha aprendido que o tempo limitado que temos
neste mundo é realmente tudo que temos para cuidar, amar e para
fazer o que deve ser feito. E me perguntei: quantas vezes separo um tempo
para banhar meus filhos e vesti-los tão carinhosamente? E com que
frequência rezo com tanta intensidade e emoção quando
peço perdão a D’us ou a outras pessoas? E questionei:
por que somos tão rápidos em deixar tudo de lado para comparecer
a um funeral, mas tão relutantes e ocupados quando se trata de
um casamento ou outra ocasião festiva?
Através de Miriam, fui lembrada do que significa estar viva e do
que realmente importa quando não estamos mais. Agora é a
hora de assegurar que tenhamos os olhos abertos enquanto podemos, de escutar
a batida de nosso coração e reconhecer as habilidades e
possibilidades que nos foram concedidas. Pois este é o nosso tempo
de nos preparar para aquilo que realmente importa e o que realmente conta,
e não temos ideia de quanto tempo temos para atingir este objetivo.
Com Miriam sendo enterrada hoje, rezo para que sua alma esteja tão
relaxada e em paz quanto seu corpo, e que de alguma forma ela saiba que
até na morte ela trouxe significado e propósito a pessoas
que ela jamais conheceu.
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